Arquivo da tag: 2020

Receita de feijoada exaustivamente explicada

Ciência na cozinha é sinônimo de segurança. É a certeza de que seu fogão não vai lançar chamas no seu corpo enquanto fornece calorias suficientes para cozinhar sua comida dentro de padrões de segurança alimentar; que a geladeira não vai eletrocutar o usuário e vai manter a comida nela armazenada em uma temperatura segura; que o liquidificador ou a batedeira não vão se desfazer durante o uso enquanto mantêm torque adequado; e é também a Ciência que vai garantir que todo alimento que você consome é seguro. Do prazo de validade confiável carimbado nas embalagens ou práticas higiênicas em produtos industrializados, até padrões e técnicas que vão fazer com que suas frutas e verduras possam não só chegar até você em condições ideais como até existir. Nossa densidade populacional hoje, 2020 EC, só é possível graças à Ciência.

Seja o America’s Test Kitchen testando centenas de combinações de temperatura inicial, tempo, métodos, quantidade de calor, pressão, peso e proveniência para chegar à receita mais simples para um ovo cozido perfeito, Alton Brown fazendo bonecos de meia para ensinar conceitos científicos íntegros em suas receitas, ou a gastronomia molecular de Hervé This que busca reinventar do primeiro ao último passo na produção de um prato utilizando várias técnicas e equipamentos antes reservados aos laboratórios científicos, a interseção entre as esferas da culinária (culinariosfera?) e da ciência aumenta mais e mais a cada dia.

É, portanto, possível supor que, ao voltar no tempo, essa ligação diminua gradualmente e a nossa culinária moderna e tecnológica se mostre descendente de uma mais esotérica e abstrata em seus conceitos e técnicas. Dois exemplos são a prática da Magia Simpática, que conferia poderes curativos a certos alimentos que fossem visualmente parecidos com o órgão ou parte do corpo afetados (um cogumelo em formato de orelha ser usado para tratar surdez ou chifre de rinoceronte para tentar reverter um sentimento de inadequação masculina) e a transubstanciação da bolacha religiosa que, na mente de seus praticantes, muta de uma mistura de farinha e água para um pedaço de carne humana que impute poderes especiais aos seus consumidores (um deles sendo o de jamais se questionarem se isso poderia ser considerado canibalismo).

No meio desse caminho existe uma interessante interseção tangencial (topólogos, me desculpem o linguajar) que veio ao meu conhecimento graças à estes tempos pandêmicos onde vivemos.

Um dos livros de culinária mais vendidos de todos os tempos, Joy of Cooking, foi escrito por Irma S. Rombauer, em 1931. Parte do sucesso do tomo é o estilo em que foi escrito. Não é um manual técnico ou uma coleção de listas de ingredientes, dados e medições, mas um livro que quase dialoga com a leitora (estou fazendo um juízo de valor e supondo que o público-alvo à época era integralmente feminino).
São receitas simples, com ingredientes comuns, mas entrelinhados com dicas, sugestões, anedotas e estórias da vida e experiências de Rombauer. Ela diz que achava difícil assar pão porque “alguém me deu uma noção exagerada das dificuldades em lidar com massas fermentadas e, assim, me privou por muito tempo do prazer que é assar e servir pão feito na hora“.
Na introdução do capítulo de verduras e legumes ela conta como cozinheiros de hotéis e restaurantes que, enquanto preparam deliciosas carnes, maltratam seus vegetais que “ficam drenados de toda sua força vital e desesperadamente se rendem ao inevitável“.
É um livro de receitas que permite ao leitor se deleitar antes de sequer abrir a despensa. É um estilo revolucionário e inspirador de culinária poética, capitaneado por Julia Child, perpetuado por Nigella Lawson, que preza mais pela arte narrativa do que por medidas precisas e temperaturas exatas, que torna a comida uma experiência não só para os sentidos como para a imaginação e que começa a ser consumida ainda nas páginas, em forma de letras e frases.

O “S” da sua assinatura é de Starkloff, um nome famoso entre sanitaristas e epidemiologistas, e particularmente notável hoje para nós, que nos vemos lutando contra a desinformação propagada pelo clã de pseudopatriotas evangelistas do ódio e suas listas de zap-zap.
Max Carl Starkloff, irmão de Irma, era médico e foi comissário de saúde de St. Louis em 1918, tendo sido o responsável por fechar estabelecimentos públicos e escolas e por proibir aglomerações de mais de vinte pessoas na cidade durante a pandemia de influenza naquele ano, sendo creditado como um dos primeiros defensores da prática de distanciamento social como tratamento preventivo durante surtos de doenças comunitárias.

A história de Max durante sua trajetória como responsável pela saúde da maior área metropolitana do Missouri durante uma pandemia é enfurecedoramente familiar. Sua luta contra os desejos do prefeito em manter tudo normal, a reabertura prematura da cidade que desfez todo o trabalho anterior, até o gráfico de casos e mortes nos é familiar, cento e dois anos depois. (Isso e o racismo desenfreado que infelizmente ainda nos assola, tanto lá quanto cá. Vidas negras importam!✊🏿)
Ele conseguiu, no entanto, conter os casos e achatar a curva, mantendo sua cidade como uma das menos afetadas do país mas apenas após medidas drásticas de distanciamento físico e fechamento de comércio e escolas.

Existe também uma conexão consideravelmente mais tortuosa de Irma com a ciência. A primeira edição de Joy foi autopublicada pela autora, que mandou imprimir três mil cópias do volume numa gráfica que até então existia exclusivamente para imprimir rótulos do antisséptico bucal Listerine, inventado por um químico de St. Louis e cujo nome é uma homenagem a Joseph Lister, médico pioneiro da antissepsia cirúrgica.
Mas isso é mais curiosidade que conexão.

Todo esse preâmbulo é para compensar a falta de levidade e personalidade da minha receita de feijoada que é basicamente um manual técnico e uma lista de ingredientes, dados e medições.

FEIJOADA

1) Material necessário

a) Recipiente de 3 litros (ou maior)
b) Recipiente de 2 litros (ou maior)
c) Colheres medida
d) Faca e tábua de corte
e) Colher de pau
f) Panela de pressão de 7 litros (ou maior)
g) Opcionais:
i) Chaleira
ii) Descascador de batatas

2) Ingredientes

a) Feijão, preto seco: meio saco (ou 500g, feijão seco)
b) Linguiça, calabresa: 600g
c) Bacon: 400g
d) Carne de charque: 250g
e) Cebola: 1 grande ou 2 médias (~250g)
f) Alho: 6 dentes
g) Batata inglesa: 2 grandes ou 6 pequenas (~500g)
h) Folha de louro: 2 unidades
i) Óleo, soja ou canola: 15ml
j) Vinagre, tinto: 5ml
k) Opcional:
i) Limões
ii) Laranjas

3) Preparação

a) Dia anterior

i) Enxaguar o feijão em água limpa para eliminar qualquer pó e resíduo da produção; inspecionar por detritos
ii) Deixar o feijão de molho em 1,5 litro de água limpa, entre 12 e 24 horas, em temperatura ambiente ou geladeira
iii) Deixar o charque de molho em 1 litro de água limpa, entre 3 e 12 horas, na geladeira

b) Dia do preparo

i) Cebola e alho: descascar e cortar grosseiramente
ii) Batatas: descascar (ou não)
iii) Linguiça: fatiar em rodelas de 1 a 2cm ou em cubos de 1x1cm
iv) Bacon: retirar a pele e reservá-la; fatiar o bacon em cubos de 2 a 3x3cm
v) Charque: escorrer e fatiar em pedaços de 5cm

4) Cozimento

a) Ligar a panela de pressão no máximo e adicionar óleo, vinagre, cebola, alho, folhas de louro e a pele do bacon. Aguardar temperatura subir até ingredientes começarem a chiar.
b) Adicionar o bacon e as batatas. Aguardar temperatura subir novamente.
c) Adicionar o feijão e a água do molho juntos.
d) Adicionar charque e linguiça.
e) Mexer levemente para misturar as carnes com o feijão. Se necessário, adicionar mais água para voltar a cobrir o feijão.
f) Ao ferver, vedar a panela de pressão, reduzir a temperatura para o mínimo, e contar 10 minutos.
i) Nota: contar 10 minutos a partir da fervura e não da pressão.
g) Ao término dos 10 minutos, desligar a panela de pressão e esperar que a pressão volte ao normal naturalmente, aproximadamente mais 20 ou 30 minutos. Esse tempo é suficiente para deixar o feijão macio.
i) Nota: até a temperatura baixar o suficiente para a panela perder a pressão o feijão ainda está cozinhando. Este método resulta no melhor ponto da feijoada com o mínimo de gasto energético.
h) Abrir a panela e separar as carnes, as batatas, o feijão e o caldo em recipientes distintos. Caso seja necessário, voltar com o caldo para a panela ligada no máximo por mais cinco minutos até que aquele engrosse.

5) Considerações finais

O feijão deve ser pesado seco. Depois de hidratado ele fica até duas vezes mais pesado.
Tanto a água do molho do feijão quanto do charque não precisam ser trocadas. Todo o sal necessário à receita já está contido no charque, no bacon e na linguiça.
O item 3.a.ii (molho do feijão) pode ser pulado, desde que o tempo de cozimento seja estendido em 50% – contudo, tal etapa ajuda na digestabilidade do feijão. O item 3.a.i (lavagem do feijão), no entanto, deve continuar a ser seguido para eliminar resíduos do processamento.
Não é necessário mexer os ingredientes dentro da panela. A cebola e o alho vão se desmanchar quase que completamente e a convecção dentro da panela é mais que suficiente para infundir todos os sabores entre si. Não mexer também ajuda na hora de separar os componentes para servir ou guardar.
As carnes não precisam necessariamente ficar submersas pois já são pré-prontas. Elas devem, no entanto, manter algum contato com a água para transmissão de sabores.
Esta receita não leva pé, orelha, rabo ou outros cortes tradicionalmente associados à feijoada porque o bacon contém todos os elementos daqueles (aroma defumado, sal, gordura, proteína, inclusive colágeno da pele que é cozida junto e por inteiro) além de ser mais palatável e facilmente encontrado também no exterior.
A linguiça pode ser substituída por paio, mas este não deve ser cozido sob pressão pois adquire uma textura borrachuda (adicione paio somente no passo do item 4.h). Linguiças apimentadas ou outras variantes podem servir de substituto, tanto em parte quanto inteiramente.
Por cozinhar sob pressão, as batatas retêm seus formatos originais e podem ser servidas separadamente, por inteiro.
Nesta receita, a massa dentro da panela é tanta que a temperatura se mantém alta por algumas horas após o término do preparo, possibilitando que a feijoada seja preparada com até seis horas de antecedência e seja servida ainda quente sem a necessidade de religar a panela (a depender, obviamente, de condições atmosféricas).
É sempre interessante servir a feijoada com limões cortados ao meio para serem espremidos no feijão já servido, pois além de empilhar outra camada de sabor, a vitamina C ajuda na fixação do ferro no sangue.
O feijão já hidratado pode ser escorrido e guardado num recipiente com tampa, ou saco para alimentos, e congelado por algumas semanas. Por isso, é possível congelar um kit já pronto para ir direto para a panela, com o feijão, as carnes e os vegetais, apenas adicionando o vinagre e o óleo no dia.
Parece estranho usar a água do molho do feijão no cozimento, mas desde que ele seja lavado antes de ficar de molho aquela água é perfeitamente segura para o consumo e ainda contém vários micronutrientes que não deveriam ser desperdiçados. A espuma que se forma na superfície é apenas um subproduto de um dos componentes do feijão e não ação de bactérias ou outro microorganismos e, ao contrário do que se acredita popularmente, não causa gases no consumidor.